Uma nova forma de desespero (em esperanto)
“Muitos esperantistas defendem a tese de que a língua universal seria apenas um instrumento para os negócios internacionais ou para os diplomatas resolverem as guerras, em suas confortáveis poltronas. Esta posição é absurda. Não há língua comercial ou política que não seja renovada pelas criações da poesia. O lúdico é o manancial de onde todas as línguas extraem a seiva que as faz funcionar nos assuntos cotidianos. O esperanto, enquanto língua universal (universal porque engloba as línguas vivas e mortas, num viés espácio-temporal e verbivocovisual) exige realizações poéticas. Da mesma forma que a escrita alfabética foi consagrada pelos poemas homéricos.
Falei dos gregos de propósito. A verdadeira poesia surge na aurora dos povos. Somente gregos insolentes e brutais poderiam trazer à luz o mundo heróico de Pátroclo. Depois veio o cansaço, a ciência, com Platão e CIA. Por que seria diferente com o esperanto? Suas mais altas realizações poéticas deveriam mesmo vir em seus verdes anos. E digo isso sem sombra de dúvida, já li tudo de cabo a rabo, sei o que presta e o que não presta: posso afirmar que a mais alta realização poética do gênio esperantista já existe. Sim: temos o nosso Homero! Um Homero de cinismo, dor e desespero, como exigem os nossos tempos! Mas, além disso, por se tratar de uma língua absoluta, um poema sobre o absoluto, recobrindo a maior região de todas, o universo (de acordo com as experimentações do ultra-regionalismo).
Iniciemos nossa análise pelo primeiro verso, ora pois. Nulo nokto estis, sed Noktuo (em tradução aproximada: A noite não era, mas a Coruja). O som plangente do nokto ainda encanta o verbo quando, de reverbo, surge a audácia do Noktuo. No ritmo, noite e coruja estão integradas numa espiral ascendente. Mas a noite, sutileza do pensamento, “não era”. A Coruja olha fixamente uma noite que não é. Não poderia haver imagem mais feliz para a solidão desesperada de Deus antes da Criação. Os teólogos não precisam mais se preocupar com tão pertinente questão. Pois o poema reforça a épica do Nada ao anunciar no segundo verso: Dio!. Deus!, a Coruja sempre vigilante, mesmo no absurdo de uma noite inexistente. Temos aí, em pílula-poema de esperanto, todo o Pai Nosso.
E o terceiro verso: Mi marsas, sed la Hundoj kuras (eu ando, mas o Cão dorme). O epicentro deste terremoto verbal é o sed. Ele rebate no sed do primeiro verso. Mas se o sed do primeiro verso remetia ao não-ser de Deus na noite absurda, aqui o sed nos dá de cara com o demônio, o Cão. Cão em oposição a Coruja, portanto. Quanto simbolismo! O Cão é terreno, barulhento e gosta de comer podridões, a Coruja tem a leveza do vôo, e só come coisas vivas, a sanguinária. Duas imagens de dor e desespero. Mas não fica aí a riqueza do verso, pois ainda há a cinética, o movimento da imagem, eu ando e o Cão dorme. O Mal se faz de morto, para melhor nos abraçar. E nós, como bonecos teleguiados por uma força nefasta, sem sentido e sem dinheiro, andamos como se nada estivesse acontecendo. O verso diz: acorda, desgraçado! O Mal existe. O que vale por todos os exorcismos.
Depois disso, o mundo dominado pelo Mal vem retratado numa série de flashes. Desespero e descontinuidade são as palavras-chave. Primeiro pela pergunta: Cu la infantoj amas (as crianças amam?). Onde o freudianismo é levado ao limite pelo cinismo transgressor. Num ritmo frenético, vem o outro verso em que outra voz, essa cheia da malícia, comanda: sercu la pomjn tu (procure a maça agora!). É toda a má consciência de nosso mundo decadente que fala aí. A repetição de cu e sercu mostra o deslize esquizofrênico do fim dos tempos, da morte da arte, da poeisa em agonia, da desistência dos intelectuais, da obsolescência da cultura, da preguiça mental, do apocalipse televisivo, da corrupção, da crise, da merda geral etc etc etc. Estamos diante dos versos da consciência dilacerada, da banalidade verbal, que valem todos os discursos psicanalíticos.
Os flashes continuam, numa nova seqüência de perguntas que nos levam ao âmago do absurdo. Mi estas varmeta, vi estas varma/ li estas ter varma, sed neniu estas varmega (eu estou morno, você está quente/ ela está muito quente, mas ninguém está ardente). Um sopro de esperança em meio à agonia: já que ainda não queimamos no fogo do inferno. E se observe a sutil cadeia dos pronomes pessoais. Mi, eu, ecoa o mi do verso 3 (eu ando etc): quem anda, observa, quem observa, tem a paz, mas quem tem a paz vê o pecado no mundo; por isso eu estou morno, inquieto e confiante. Mas, contra o leitor, o poeta é impiedoso: ei, seu merda, você está quente, pisando em brasas. Atenção, você que não anda, pois quem não “anda” (isso é muito, muito sutil) dorme como o Cão, ou corre do mesmo. E o pior, ela, Eva, numa paródia muito interessante com relação ao machismo, ela está mais quente ainda. E já se antecipa o penúltimo verso (onde o diabo não pode, manda uma mulher). O diabo não pode porque ninguém está ardendo. O que não é tranqüilizador, uma vez que, se estivéssemos no inferno, a vida ao menos teria sentido. O pior é o absurdo chafurdante enlameado e agonizante em que nos metemos nesta era de pós-casamento.
E assim se encerra este poema grafoverbivoco neo-cosmológico hiper-barroco e pré-pós-modernista. A nossa miséria está completa, o mundo está cheio de pecado. É o fim dos tempos, mas pelo menos podemos conversar sobre isso entre um e outro café... (Ouçam aqui o riso amargo do poeta).
Para concluir, ouso dizer que o esperanto já cumpriu sua missão nesta terra, com tão alta realização poética.
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