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Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial 3.0 Não Adaptada. vertigemdevestigios: Ninguém pode me acusar

Wednesday, December 15, 2010

Ninguém pode me acusar

Ninguém pode me acusar, me esforcei demais pra não errar. Não sei se errei já de saída, nunca acreditei em teste vocacional, mas acreditava que tinha a vocação de resolver os problemas dos outros. Ou achei que resolvendo os problemas dos outros ia resolver os meus. Ou não ia ter que resolver os meus. Enfim, não sei. Mas me lembro da descoberta de uma coisa que me fascinou, era simples. Um colega me disse que se a gente pedisse pra alguém desenhar a família dava pra descobrir tudo sobre a pessoa. Era só olhar o tamanho dos personagens, a proximidade e a distância entre eles, pequenas deformações. Estava tudo lá. O pior é que isso foi pouco tempo antes de prestar o vestibular. Não sei porque não prestei atenção no teste vocacional que me disse eu tinha vocação pra ser engenheiro. Ou será que segui a minha vocação e escolhi o caminho de ser engenheiro de pessoas?

Sabe, a felicidade, como conceito, não é tão complicada assim. É uma questão de saber qual papel se cumpre quando você está em tal ou tal posição. O pai tem que saber que é pai, a mãe que é mãe e o irmão que é irmão. Claro que a natureza não enfia isso na cabeça de ninguém, assim de graça. Mas com algum esforço a pessoa aprende. O que não pode é o pai pensar que é irmão, o filho pensar que é mãe e por aí vai. Bem, isso é só um princípio, porque a felicidade vem depois. Com a posição assegurada a pessoa pode saber o que quer. Ela não vai ter uma vida sem dor. Mas vai ter lucro de prazer, e isso é suficiente pra alguém dizer que é feliz.

Simples, não é? A coisa complicou quando eu tive que conviver com certos tipos de colegas. Um deles, o pior, não convivi, mas conheci nos tempos de universidade. Hoje o cara aparece em programas de tv, dizendo bobagens, comentando as neuras das celebridades, e sempre indicando o diálogo pra resolver os problemas. Ele que tem a maior cara de pedófilo. Olha, se uma pessoa encasqueta de ser o que não é, diálogo não basta. Mas isso só descobri depois, quando fiz essa amizade... que... ainda não quero falar nisso. E aquele cara que espalhava os desvios e as cagadas de quem ele analisava, fulano é viado enrustido, sicrana quer que eu coma ela – na mesa de bar ele dispensava os termos técnicos, até recalcado virava xingamento pra ele, que é como as pessoas usam o conceito mesmo. Recalcado igual a frustrado. Coitado do Freud. Será que eu sou recalcado? E aquela outra, mau-caratismo, disso ninguém pode me acusar. A filha da puta diagnosticava pessoas que ela nunca tinha conhecido. Não, pensa bem, alguém diagnosticar as sogras pelo papo que teve com as noras, só pra dar um exemplo do procedimento da tal. Tem uns termos que a pessoa usa e é como se isso fizesse dela uma espécie de sábio da montanha: tipo transtorno bipolar e o buraco-negro da depressão. È bem aquele tipo que vai em palestras e enfeita um você tem que ser feliz, coisa que até minha avó sabe, com de acordo com Espinosa você tem que ser feliz. Pelo menos isso satisfaz a platéia.

Agora, o que que eu sei que a minha avó não sabia? Pra que que eu sirvo se já não sei distinguir a felicidade de acordo com Espinosa da felicidade que alguns desesperados vêm buscar no meu consultório? Ou será que agora eu vou pontificar, sabe? Bancar o sacerdote, agora que Deus morreu essas coisas. Ensinar tragédia pras pessoas. Acho que eu não devia mesmo ter caído na conversa daquelezinho, depois falo dele. Também não sei qual é a minha turma, quando olho os meus colegas. O que no meu ramo é um grande transtorno. Já pensei na seguinte solução: diluir um coquetel de tarja preta na água encanada. Ou botar todo mundo pra dormir. Porra, as pessoas acham que eu sou o quê? Um tipo de conselheiro sentimental? Vocês não estão vendo que a minha vida é uma merda?

Ninguém pode me acusar, sou humano. Até quase me apaixonei por uma psicótica. Ou ela pensou que eu estava apaixonado por ela porque ela julgava que estava apaixonada por mim. E eu acreditei nisso, que eu estava apaixonado por ela. Na dúvida, apelava pra transferência e tudo passava a fazer parte do tratamento, pensava assim, tenho que cumprir o meu papel se não a coisa degringola. Nunca entendi o que acontecia com ela. Entender no duro mesmo. Porque explicar é outra coisa. Entender exige mais profundidade. O tempo todo ela fingia, ela se fazia de louca mesmo, isso era muito evidente. Quase que dizendo, esse é o jogo que eu tenho que jogar pra poder fingir que estou apaixonada por você? Ela fingia, tudo era um teatro, ainda assim ela era louca. Então, ela não representava bem o seu papel? Não! Sabe por quê? Porque ela queria ser amada. E convenceu todo mundo de que era louca mesmo. Mal do século, musa romântica, essas pirações. Mas quem é que não quer uma musa romântica em sua vida? Eu não quero, não me estranhe, não sou louco não. Pelo menos, não sou louco do jeito dela. Tenho um poema dela aqui comigo, posso ler pra você? Aliás, o chato é que o louco quer a mesma coisa que você, isso que te tira o chão.

Peraí que vou chegar lá, no poema. Ou será que o normal é quem sabe que não quer de verdade aquilo que diz que está querendo? Todo mundo sabe que esse papo de felicidade é história da carochinha, todo mundo sabe que ninguém fala sério quando fala sobre isso, todo mundo sabe que a vida é foda. Mas é melhor continuar falando, eu quero ser feliz, pra não posar de louco. O louco pode ser alguém que apenas acreditou demais nisso tudo, pelo menos num dos casos da loucura. Como é que seria um romance tórrido com uma psicótica? Sabe, ela às vezes tirava a roupa e ficava dançando no pátio. Quem não queria gozar dessa liberdade? Eu não. Ninguém pode me acusar disso.

O poema dela: “Onde está a Margarida?/ - Num castelo encantado/ onde um rei pôs cinco pedras/ que ninguém pode tirar”.

E onde é que eu estou agora? A insanidade reconhecida pelo menos ia me livrar de uma porção de problemas. Será que tenho direito a isso, a esse tipo de asilo legal? Ando por essa porra de apartamento, já faz tempo que saber o que pode estar rolando na rua deixou de me interessar. Essa cidade não presta não. Não tem ninguém interessante. Ou eu não sou suficientemente interessante pra ela. Dá no mesmo. Aqui dentro é como se eu já estivesse confinado. Lá fora também, os colegas começaram a desconfiar de mim por causa das minhas amizades. E olha que ninguém soube dessa minha paixonite aguda pela psicótica. Aqui dentro do apartamento, nem sei há quanto tempo estou aqui, mas eu sinto como se um buraco estivesse sendo cavado dentro de mim. Já até estou ouvindo a minha colega, a dos diagnósticos à distância, retomando o velho buraco-negro, pra ela tudo é tão fácil. Não é nada disso não, cretina, é que eu comi o castelo, as cinco pedras, com rei e margarida e tudo e agora todo dia me sinto como se estivesse na iminência de vomitar.

Outra coisa que tipos como ela usam, eu também usei muito, é a palavra fuga. Tudo é fuga de uma coisa. É um barato esse poder de dar nomes às coisas. E o jogo é o seguinte: tem muito otário que fica satisfeito quando você convence ele de que ele está doente. Aí você fala: você trabalha isso é uma fuga, você lê isso e aquilo e isso é uma fuga, você bebe e isso é uma fuga, você fica sóbrio e isso é uma fuga, você nada e isso é uma fuga. Você pode pensar que isso é o lado vulgar da minha profissão, e ninguém pode me acusar disso. Mas, minha dúvida é se a vulgaridade está na alma do que eu faço. O problema é quando a pessoa pergunta, ninguém nunca pergunta: fuga de que? Quem está fugindo está fugindo de alguma coisa, né? Você sabe do que que eu estou fugindo? Quem me revelou isso foi o meu amigo, já te falei dele? É o seguinte, tem vulgar mais ou menos sofisticado, vulgar pra todos os gostos e todas as doenças, quase todos jogando o joguinho sórdido da felicidade. País dos advogados? Dos corruptos? Dos jogadores de futebol? Nada disso, meu chapa, esse país é nosso!

Ele, o meu amigo, me chamava de terapeuta abjeção. Imitava a minha voz e dizia

O doutor vai melhorar meu auto-estigma? Eu é que vim curar o senhor, vou curar o senhor espalhando uma epidemia. Perto de onde eu morava tinha uma árvore cleptomaníaca.Eu tava vendo na tv, um demônio estava dizendo que está todo mundo louco.

Fazia perguntas cretinas como

Sua mãe colocou lodo na sua mamadeira, que nem a minha? O senhor não sabia que Deus também é louco? O céu é um insulto: o senhor vai me insultar também doutor?

E afirmações não menos cretinas

Eu é uma doença incurável doutor.

Acho que ele está me controlando, não, não é brincadeira não, ele está usando um controle remoto. Tem dias que eu acho que sou um sapo. Um sapo cheio de veneno. O meu amigo, o psicopata, tinha seus momentos de loucura e seus momentos de sanidade mental. Qual é qual é que virou a questão pra mim. Acho que ele, do mesmo jeito que a psicótica, a minha paixonite aguda, fingia. Mas, como? Eu dizia pra mim mesmo. Louco não finge. Louco não joga. Se eu quiser, eu, eu posso me fingir de louco. Mas eu controlo a brincadeira e paro quando quero. Vocês não estão se fazendo de loucos não porra! E tem outra, quem disse que louco quer ser amado? Não sei de onde eu tirei essa merda. Eu é que quero ser amado. Por quem? Um dia ele chegou no meu consultório e veio falando com a cara mais lambida


Você tem que lembrar doutor, tem compromissos. Tem dinheiro escondido aí nessa cadeira, doutor. Dinheiro do seu pai. Tem dinheiro meu também, doutor. O problema desse mundo, doutor, é que o pai quer ser mãe, você já viu doutor, até os animais estão desobedecendo a ordem, doutor. Tem galinha que já pensa que é urubu. Cada um tem que ser o que é, ninguém sabe quem comanda, mas sempre foi assim. O doutor está aí pra consertar as coisas, né? O doutor viu como estou falando direito,, deve ser o remédio doutor.

Nunca prometi felicidade, ninguém pode me acusar disso. Apenas uma forma mais ou menos satisfatória de adaptação. A tua sorte é que as coisas mudaram. Quem me dera jogar um jato de ducha fria nessa tua cara, amigo. Aí eu queria ver até onde ia a sua ironia. Eu ia gritar na tua cara: louco filho da puta não pode ser irônico não, ouviu desgraçado, louco não finge, louco não joga, ouviu, não era isso o que você queria, toma! Que enfermeiro que nada, eu mesmo ia segurar a mangueira!

O doutor é louco que nem eu. O doutor não é que nem os outros. Eles vão ver doutor, o doutor vai ser descoberto. Daqui a pouco o senhor vai estar como eu. E não adianta o doutor chamar os seus companheiros de conspiração, doutor. Estão todos fora de órbita. Eu te avisei, já tem galinha pensando que é urubu. O doutor se fodeu, doutor.

Acho que esse meu amigo é um cafajeste. O sujeito não presta, recusa o meu auxílio. Quem me procura quer alguma coisa, então eu ajudo. Um tipo de garçom que mostra um cardápio, que tipo de emoção vai hoje?, qual a sua opção sexual?, pedofilia é opção sexual? Você precisa atuar bem no seu papel, se não vai dar tragédia, e coisas assim. Acho a turma que fica no silêncio é apenas pedante, mas serve, já que tem gente que apenas gosta de ser ouvida, e o mundo simplesmente não vai pra frente sem os moderninhos que ensinam tragédia pros intelectuais. Ou sei lá, no final eles escrevem belos livros sobre o assunto. Eu não, no meu íntimo sempre quis promover felicidade, ajudar os outros, ser humano, sabe? Ninguém pode me acusar disso.

Um dia ele veio e me perguntou,
Doutor, o que que tem a ver a arara e o número 10?

O pior é que eu fiquei pensando nisso, sem parar. Perguntei pra um monte de gente, sem dizer onde tinha ouvido. Eu dizia que era uma piada, tipo o que é o que é, ninguém sabia. Até que uma hora me dei conta, estava na minha mão. Fiquei muito puto. Quando ele veio no meu consultório de novo, fui logo gritando, com todas as forças: Nunca viu uma nota de dez reais não, seu filho da puta!! O pessoal lá fora ouviu. Não sei se eles já estavam preocupados, mas pode ser que tenha sido aí que a perseguição começou. Eu continuei: por que, meu Deus, não cai um Schreber na minha mão? Um louco talentoso, um artista, um profeta? Pra mim só mandam louco meia boca. Você não me desafia, seu cretino! E olhei pra ele e gritei: Pangaré! Pangaré! Se caísse um desses loucos excepcionais na minha mão, ah, aí eu ia escrever um livro, um libelo a favor da luta antimanicomial, ia mostrar toda minha inteligência e sensibilidade, eu ia dar o fora, ia ganhar dinheiro dando palestra, ia dar entrevista em caderno cultural. Agora o que que eu faço com você? Um livro de piadas? Minha vida é que é uma piada de mau gosto. Disso ninguém vai me acusar. Você está pensando que eu nunca ouvi essa tua conversa antes? Já vi muita gente falando igual a você, isso não quer dizer nada.

O doutor também fala igual os outros.

Falo porque esse é o meu trabalho meu querido. Eu tenho que ser o neutro, bancar o nulo, pra pessoas como você despejaram sua conversa mole em cima de mim, pra vocês não amolarem sua família, se é que tem uma. Eu to aqui representando, entendeu? Aqui, só aqui, eu sou o doutor. Minha vida, fora daqui, é interessante pra caralho.

O doutor não sabe fingir.

Depois disso aí, vieram me perguntar porque eu estava conversando tanto e tão alto com um psicótico. Me perguntaram se eu estava usando alguma outra técnica, que isso tinha que ser conversado e coisa e tal.


O doutor já pediu pra uma pessoa desenhar uma coisa?
Não, por quê?
A pessoa estrupa o papel. Dá pra ver tudo. O doutor já foi estrupado?
Não, mas já estuprei muita gente. (O que que é isso, agora vou ficar respondendo as perguntas desse canalha? Não estou mais analisando, isso aqui virou uma conversa. Sou um fracasso, uma fraude)
Estrupo é coisa da mente.
(Não todos, só a maioria). Pois é.
O estrupo da mente deixa a cabeça da pessoa cheia de bicho.
(Se você fosse normal, ia saber que minhoca na cabeça, pulga atrás da orelha, isso é tudo metáfora. Não tem nada a ver.) E como são esses bichos? Você já viu um deles?
Por que o doutor não fala primeiro?
Escuta aqui, você está lendo meus pensamentos seu cretino? Vou logo te avisando: louco não tem amigo, ouviu?, louco não tem amigo! (Puta que pariu, gritei de novo).
Aí começou a perseguição. Você pode está se perguntando, por que então você não trabalhou com gente normal? Não existe psicólogo de gente normal? Você acha que ia ser melhor? Então deixa eu te contar. Tem dois tipos de pessoas que te procuram, em geral. O primeiro, é aquele velho problema, quer ser feliz. O que que ta pegando? Ah, doutor, são os obstáculos. E você sabe o que são esses “obstáculos”? São outras pessoas, que por acaso também querem ser felizes. Um exemplinho sórdido e comum: o rapazinho ta apaixonado por uma garota, a garota tem um namorado, e o namorado é gente fina, doutor. Então, preciso me livrar dele pra poder ficar com a garota. Você ta achando graça, né? Mas pode saber que isso acontece, com algumas pequenas variações. Ou seja, o primeiro obstáculo que a pessoa quer jogar fora é, pra maioria, os seus próprios escrúpulos, pra uma minoria, a culpa. E isso, por que? Porque todo mundo se convenceu que tem direito, eles falam assim, sublinhado, direito de ser feliz, muito feliz. Se eu fosse sério eu diria, quem te disse isso, por que você acha que tem esse direito, seu filho da puta? Você tem mais é que se foder. Viu como eu ia perder a clientela? Porque é o seguinte: pra funcionar tem que rolar uma cumplicidade. Ou seja, ser cúmplice. Vamos ao segundo tipo – o que eles querem é que eu fale qualquer coisa que tenha a ver com doença. Eu tenho que inventar uma doença pra eles, pra todos. É como se o mundo ficasse mais reconfortante se as merdas se resumissem a isso, essa tragédia, todo mundo é doente e pronto. Com a doença eles então vão poder perdoar os outros e, em primeiro lugar se perdoar mesmos, não é doutor (tem sacana que fala assim). Ou seja, também vão poder se livrar de uns obstaculozinhos que estão atrapalhando, eles que nasceram pra ser felizes, mas tiveram a desgraça de ser e nascer no meio de gente doente. Tipo, não tem mais filho da puta, chantagista, cafajeste, picareta, sacana, o que tem é deprimido, bipolar e o caralho a quatro. Então, não tem gente normal com casos mais drásticos? Tem sim. Mas quase sempre vai dar nesse tipo de frescura aí. Eu tinha vontade de saber de cor aquele poema, sabe?, aquele mais ou menos assim: se você quer se matar, por que não se mata logo? Você acha que os outros vão sofrer por sua causa? Vão nada! Quem gosta muito de você vai sofrer no máximo uns seis meses, e depois uma vez por ano, no seu aniversário. Então, se mata logo filho da puta! A outra solução seria eu ficar mais calado, pra já selecionar de antemão uma clientela mais sofisticada, só pra um papinho mais culto, entende? Mas aí eu é que não sou moderninho e sofisticado o bastante pra isso. A verdade é que não tenho saco. Porra, eu tenho que escolher entre ser conselheiro sentimental e guru?

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