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Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial 3.0 Não Adaptada. vertigemdevestigios: June 2007

Saturday, June 09, 2007

Flávio de Carvalho sobre a Guerra Total em Estilhaços

"O soldado heróico e o masoquista funcionam do mesmo modo; ambos procuram salvar qualquer coisa, a pátria e o mundo, ambos sacrificam-se para um suposto bem geral; o masoquista tem dó de si mesmo e sente-se forte no sofrimento, deseja ser maltratado para mostrar quanto o mundo é mau, procura no maltrato e na dor o alívio para o seu desejo; quer ser vítima, quer que todo mundo veja a sua situação que ele considera injusta; é no sentimento de justiça que nasce esse seu desejo sofredor. Ele acha que o mundo não soube apreciá-lo, que ele devia estar por cima dominando e para castigar o mundo se submete ao sofrimento para que o mundo tenha remorso e o aclame como herói. Ele deseja que o mundo venha fazer contrição a seus pés. Aí então ele se sente fraternal e amigo do mundo. Ele é o salvador de almas; o Cristo, o padre, o Buda, o Moisés, o mendigo, o político esquecido, o recluso, a prostituta amorosa, o homem de gênio, o seu fetiche é o mundo, seu deus, ele mesmo. O seu intenso desejo de se congelar num todo poderoso exige uma grande exibição de astúcia - a modéstia, a submissão, a timidez, o engodo, a sobriedade são suas armas. Do contato com o mundo ele constrói a imagem do tirano, recebe o chiste dessa imagem esperando a contrição, o momento de ver o colosso humilhado a seus pés. O processo de fetichismo é duplo - as suas carícias agressivas sobre o mundo objetivo em vez de exibir as inferioridades desse, ao contrário, provocam o aparecimento de superioridade, de tudo quanto é viril e agressivo. Ele quer parecer pequeno ao lado do mundo objetivo. Tendo construído o seu tirano, ele procura por um toque mental capaz de desorganizar o aspecto, profanando o santuário do tirano em comédias de cinema, mostrando sua alma vazia, humilhando-o. A vida do tirano está em suas mãos; ele torna-se assim o salvador do tirano, o benevolente, o santo, o fetiche-Cristo, o igual ao herói, o querido da mulher, o homem-vaselina que ficou deus.

O soldado heróico, conservando-se numa posição inferior, consegue formar planos, fraternalmente guiar tropas em número inferior contra um inimigo imaginário, esmagando sempre o inimigo. O seu fraco são os prisioneiros. Surgem aos milhões em grandes massas para mostrar aos conterrâneos o heroísmo do soldado esquecido; ele se sente grande e não deseja ser nada acima de um major ou um coronel, para mostrar aos seus superiores e ao mundo em geral a injustiça de ter sido esquecido. Muitas vezes procura um sofrimento maior, tenta retroceder a um posto inferior, ser tenente sacrificado ou cabo, mostrando ao mundo o quanto é bom e grande; se ele se tem em muita consideração, procura ser miserável, abandonado do mundo, esquecido, tem pena de si mesmo e se comove com as menores coisas e deseja ardentemente ser socorrido por amigos e ser transformado em herói modesto. Ás vezes ele deseja a morte como paliativo mundano, antecipando o monopólio sexual, um gozo post-mortem.

O político heróico segue mais ou menos o mesmo percurso."