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Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial 3.0 Não Adaptada. vertigemdevestigios: October 2008

Monday, October 06, 2008

Pobre lobo

Uma fábula de Mikhail Saltykov-Schedrin
(trad. Do inglês)



Uma vez o coelho se meteu em encrenca, e com o lobo. Outra fera talvez se comovosse com o espírito de auto-sacrifício do coelho, não se contentando com a promessa de libertá-lo, como o fez o lobo, mas o teria libertado ali mesmo, naquele momento. Mas, de todos os predadores dos climas frios e temperados, o lobo é o menos propenso a atos magnânimos.
Contudo, não é por sua livre e espontânea vontade que o lobo é cruel, e sim devido à sua natureza perversa – ele não pode comer outra coisa a não ser carne. E, para obter o alimento necessário à sobrevivência, o lobo não tem outro meio, se não tirar a vida de outra criatura. Em outras palavras, ele é compelido ao crime - ao assassinato.
O lobo não consegue sua comida facilmente. A morte não é doce para nenhuma criatura, e é apenas com a morte a tiracolo que ele se aproxima de todos. Então as feras mais poderosas se defendem dele, e as que não conseguem se virar sozinhas recorrem à defesa de terceiros. De tempos em tempos o lobo sente fome, inclusive com as costelas aparentes sob o couro estragado. Nestas horas ele se senta, ergue o focinho e uiva com tanta violência que mesmo a milhas de distância os corações dos viventes desmaiam de terror. E a fêmea uiva ainda mais miseravelmente, porque ela tem filhotes e nada para lhes dar de comer.
Não há animal sobre a face da terra que não odeie o lobo, que não o amaldiçoe. Toda a selva murmura enquanto ele passa: “Assassino! Maldito lobo...”, e ele segue adiante, não ousando olhar para trás. E depois que ele passa, os animais o chamam de ladrão e torturador.
Há mais ou menos um mês o lobo pegou a ovelha que pertencia a uma camponesa velha – as lágrimas da mulher ainda não secaram, “lobo maldito! Sanguinário!” Mas desde então ele não teve nada além de sementes de papoula na boca. Ele devorou a ovelha e não pôde mais ter uma boa refeição. A velha mulher uiva, o lobo também uiva... E quem vai dizer que ambos não estão no seu direito?
Vão dizer que o loubo rouba o camponês, mas o camponês, quando está com raiva, também sabe ser feroz. Ele mata o lobo a pauladas, ele atira no lobo, ele cava a terra para preparar armdilhas e se põe de tocaia.
E se você mata um lobo, isso de nada lhe serve. A carne dele não é boa de se comer, o couro é imprestável. A única satisfação que você terá é a de vê-lo sangrar aos poucos, “Morra fera maldita! Quero ver seu sangue cair, gota a gota!”
O lobo não pode, sem tirar a vida de outros, permanecer vivo sobre a face da terra – essa é sua desgraça. Mas nem isso ele entende. Ele apenas pensa que vive. O cavalo carrega seus fardos, a vaca dá leite, a ovelha dá lã e o lobo – rouba e mata. O cavalo, a vaca, a ovelha e o lobo, todos vivem de acordo com sua natureza.
Mas, finalmente, apareceu um entre os lobos que, depois de anos matando e roubando, na velhice parou para pensar se não havia algo de errado em sua vida.
Ele viveu, este lobo, como um jovem temerário. E foi um dos poucos animais de rapina que raramente passou fome. Dia e noite ele roubava, e sempre esteve com as dívidas em dia. Ele pegava as ovelhas bem debaixo dos narizes dos camponeses; ele invadia as fazendas; ele matava as vacas; certa vez ele quase matou o guarda florestal; ele levou um garoto para a mata, bem diante dos olhos dos aldeões. Ele ouviu dizer que por isso era amaldiçoado e odiado. Mas não quis saber, apenas se tornou mais e mais feroz.
“Eles deviam saber o que se passa na floresta”, ele pensava. “Não há um momento em que não ocorra um assassinato, em que um pequeno animal não esteja ganindo enquanto sua vida se esvai – mas, de que serve prestar atenção nisso?”
Então assim ele passou a vida, com suas rapinas, e finalmente chegou à idade em que se diz que um lobo fica mais severo. Ele ficou um pouco mais pesado, mas nem assim parou com as pilhagens: ao contrário, ele parecia até mais feroz. Porém, num dia sem sorte, um urso o capturou. E ursos não gostam de lobos, porque os lobos os atacam em grupos, e freqüentemente o fazem na floresta, e assim os rumores se espalham, e Mikhael Ivanovicht viu o pior disso tudo: seus inimigos cinzas fizeram picadinho de seu casaco de pele.
O urso então segurou o lobo com sua pata e pensou, “O que eu farei com ele, o vilão? Se eu o devorar, ficarei doente; se o estrangular e abandonar, toda a floresta ficará empesteada com o mal cheiro de sua carniça. Vamos ver se ele tem alguma consciência. Se ele tiver e jurar que nunca mais roubará novamente – eu o liberto.”
“Lobo, presta atenção”, disse o urso, “você não tem consciência?”
“Ó graciosa, magnífica Excelência,” o lobo respondeu, “como seria possível ser vivo e não ser consciente?”
“Ó digníssima Excelência, solicito um esclarecimento. Não é meu dever me alimentar e alimentar aos meus, minha fêmea e meus filhotes? Qual o seu ponto de vista sobre isso?”
Mikhael Ivanovicht refletiu um pouco e concluiu que, se era justa a existência do lobo sobre a face da terra, ele tinha o dever de se alimentar.
“É o seu dever”, ele disse.
“Mas eu não posso comer nada, a não ser carne! Tome a si mesmo como exemplo, Excelência. O senhor faz uma boa refeição com um bocado de amoras, ou toma um pouco do mel das abelhas, ou mesmo come uma porção de aveia. Mas, para mim, é como se essas coisas não existissem! Mais ainda – o senhor tem outro privilégio, Excelência: no inverno, quando o senhor se recolhe à sua gruta, o senhor não precisa de nada além do calor de suas próprias patas! Quanto mim – seja verão ou inverno – não há um momento em que eu não tenha que pensar em comida. E sempre carne, como o senhor sabe. Bem, como conseguirei meu alimento se não tirar a vida de alguém?”
O urso pensou sobre essas palavras. Mas ainda queria testar o lobo um pouco mais.
“Bem, você poderia tornar as coisas um pouco mais fáceis, por assim dizer.”
“Eu o faço, Excelência, eu tento tornar as coisas mais simples, na medida do possível. A raposa, não, esta é um tormento: ela encurrala uma criatura e pula sobre ela e a encurrala novamente e pula novamente... Eu não, vou direto na garganta – e tudo está acabado!”
O urso pensou ainda mais intensamente. Ele viu que o que o lobo dissera era a verdade fatal, mas ainda assim temia libertá-lo: ele retomaria o seu trabalho de rapina.
“Arrependa-se lobo!”, ele disse.
“Não tenho de que me arrepender, Excelência. Ninguém é inimigo de sua prória vida, e não posso ser a exceção. Qual é minha culpa?”
“Bem, você não poderia prometer...?”
“Eu não posso prometer, Excelência. A raposa não, ela te prometeria qualquer coisa. Mas eu não posso.”
Fazer o quê? O urso refletiu novamente e tomou sua decisão.
“Você é a mais desafortunada das feras, esta é a minha última palavra sobre você”, disse o urso, “eu não posso te condenar, apesar de eu saber que me torno um grande pecador ao te libertar. Só posso dizer mais uma coisa: em seu lugar eu não apenas não atribuiria o menor valor à minha vida, como consideraria a morte uma misericórdia! Apenas pense sobre o que eu te digo.”
E ele deixou o lobo livre sob os quatro ventos do céu.
E assim que o lobo se viu livre das garras do urso, começou novamente o seu jogo. A floresta se lamentou com seus novos crimes. Ele continuou assaltando a mesma vila, e matou três ou quatro cordeiros por razão nenhuma – e simplestemente não se importava. Ele se escondia nos pântanos, de barriga cheia, esperguiçando-se com os olhos entreabertos. Ele, inlcusive, atacaria o urso que tinha sido tão leal, mas felizmente o urso percebeu sua investida, afastando-o com um simples gesto de ameaça.
Bem, por um tempo ele ainda seguiu sua vida turbulenta, até que a velhice chegou. Sua força decaiu, a antiga agilidade se foi e um dia um camponês atingiu sua espinha com uma pancada de porrete: e apesar de ele ter se saído bem dessa, pouco restou do velho assassino temerário. Ao procurar um nova presa, as forças de suas patas o abandonariam. Ele iria aos limites da floresta, na tentativa de raptar uma ovelha, e os cães sairiam em seu encalço, latindo furiosamente. E ele usaria a própria cauda como cobertor, dormindo de barriga vazia.
“E agora, eu tenho medo até dos cães?”, ele diria a si mesmo.
Ele retornaria à sua toca e uivaria novamente. Na floresta, a coruja piaria e no pântano o lobo uivaria – na cidade, quantos afazeres!
Certa vez, porém, ele conseguiu pegar um cordeiro e começou a levá-lo à floresta. O cordeiro não entendia o que se passava, apenas dizia:
“O que é isso? O que é isso?”
“Eu vou te mostrar do que se trata, imbecil!”, disse o lobo, furiosamente.
“Meu tio, eu não quero passear na floresta. Eu quero minha mãe! Eu juro que não faço mais, tio, eu juro!”, o cordeiro murmurou, “oh pastor, querido pastor, oh cães, queridos cães!”
O lobo parou e ouviu. Ele tinha matado muitas ovelhas e todas tinham lhe parecido indiferentes. Ele se lembrou de que elas apenas fechavam os olhos, resignadamente, como se este fosse apenas o seu destino. Mas esta criança – como chorava! Ela queria viver! Vai ver, essa maldita vida era doce para alguém! E mesmo ele, o lobo velho, gostaria de viver mais cem anos se pudesse.
E foi aí que ele se lembrou das palavras do urso, “em seu lugar eu tomaria a morte com bênção, e não a vida.” Por que isso? Por que para as outras criaturas da terra a vida era uma bênção, mas para ele a vida era uma maldição e uma vergonha?
E sem esperar uma resposta o lobo libertou o cordeiro, indo, com o rabo encolhido, para a sua toca, onde poderia pensar sobre o assunto, no ócio.
Mas pensar não tornaria as coisas mais claras para ele, as conclusões seriam as mesmas já sabidas havia muito tempo – que não havia outro modo para ele, o lobo, viver, a não ser na rapina e no assassinato.
Ele se deitou como um panaca no chão e ficou ali estatelado. Sua mente lhe dizia uma coisa, seus instintos queimavam com outras verdades. Quer fosse a doença o enfraquecendo, ou a velhice anunciando o fim de seus dias, fosse a fome o exaurindo, ele não conseguia ter a mesma lucidez de antes. Em seus ouvidos, soavam as palavras: “Fera amaldiçoada, assassino, torturador!” E qual diferença fazia saber se ele tinha ou não uma noção exata da gravidade mortal dos pecados que cometia? Isso não poria um fim às maldições. De fato, o urso tinha dito a verdade: nada lhe restava se não acabar com aquilo tudo.
Mas aí surgia outro problema. Uma fera não pode dar fim a si mesma. Uma fera não tem livre-arbítrio. Era como se ele vivesse num sonho, e sua morte seria um sonho também. Talvez, os cães o façam em pedaços, ou um camponês meta uma bala em sua testa, daí ele vai gemer um pouco e se contorcer e então tudo estará acabado. E de onde a morte veio – ele não terá como saber. Talvez, ele poderia passar fome até morrer... Mais tarde, quem sabe ele nem sequer conseguisse mais pegar as lebres, ameaçando apenas os pequenos pássaros. Ele agarraria uma codorna ou uma andorinha, e esta seria sua refeição. E mesmo assim os outros animais repetiriam: “maldito! Maldito! Maldito!”
Realmente maldito! Como alguém pode viver apenas para roubar e matar? É verdade que acusá-lo era injusto, sem sentido; ele não fazia nada por escolha própria – mas como eles poderiam evitar amaldiçoá-lo? A quantas feras ele tinha dado um fim? Quantos camponeses ele deixara sem nada, na miséria pelo resto da vida?
Muitos anos ele gastou com estes pensamentos torturados; só uma palavra soava em seus ouvidos: “maldito! Maldito! Maldito!” E ele mesmo repetia com freqüência, “realmente maldito – eu sou maldito, um assassino, um torturador!” E mais uma vez com fome ele saía para a caça. Ele agarrava, mordia e matava suas presas.
E ele começou a chamar a morte. “Morte! Morte! Por que você não me livra de mim mesmo?”, ele uivava, noite e dia, olhando o céu. E homens e feras, ouvindo esse uivo, tremiam de medo, “assassino, assassino, assassino!” Ele nem sequer podia imprecar aos céus sem atrair para si novas maldições de todos os lados.
Ao menos a morte teve piedade do lobo. Começaram a aparecer pela floresta novas armadilhas, e esquadrões armados se punham em seu encalço. Um dia ao se deitar em sua toca ele ouviu um chamado. Levantou-se e viu à sua frente um monte de estacas, e de todos os lados camponeses observando. Ele nem sequer tentou escapar, entregou-se calmamente à morte, de cabeça baixa.
E de repente alguma coisa estourou em sua testa. “Aqui estou... Morte, a libertadora!”